sexta-feira, 13 de agosto de 2010

A HORA DO CAFÉ


Onde estaria o açúcar afinal de contas?Ao final de tudo.Onde estaria o sentido implícito da lógica ao avesso?Na pilha de papéis inconclusos sobre as mesas?Nas xícaras deixadas pela metade?Nas longas pausas entre uma colheirada e outra de expectativa dissolvida em grãos de êxtase descafeínado?


  Trabalharam durante quase cinco anos lado a lado no mesmo escritório, separados exclusivamente por uma fina parede confessionária, que pouco servia como material concreto, exceto talvez para isolar os desejos libidinosos da fértil imaginação.Ambos se viam diariamente nas horas do café, ou eventualmente em reuniões e corredores.


  Palavras cordiais, brincadeiras nada comprometedoras.Colegas, pura e simplesmente colegas.
Por onde sua mente devassa já passeou nesse momento?Eles eram colegas!Guardando em si a odisséia moral de nunca revelar emoções.Escondendo-se da hipocrisia dos outros, custeando a sua própria.Bem casada ela.Muito educado ele.Diplomáticos.Cúmplices de olhares insinuantes em códigos de conduta impessoal.Até que uma notícia inesperada ameaçou a paz de suas rotinas de workaholics habituais.Ela iria embora.Estava deixando a Empresa.Uma nova oportunidade havia surgido.Um ruflar de asas necessário pra todos.Mas que vento desagradável sacudia as árvores naquela tarde primaveril!


  Como ela podia fazer isso?Que seria das manhãs dele sem o perfume suave dela invadindo sua sala sem bater, sem sua fala macia de timbre aveludado acariciando tímpanos ao telefone, e a hora do café, a tão afamada hora do café, intervalo dos afazeres, coisas deixadas de lado, momento que separa duas Eras distintas do dia- O antes e o depois do Despertar Matinal - Meu deus,como seria o gosto desse momento tão descontraído de interação social? Os flertes sutis mascarando a intimidade compartilhada, o paladar insípido já pressentia o desfecho em goles amargos;Onde estaria o açúcar afinal de contas?Ao final de tudo.Onde estaria o sentido implícito da lógica ao avesso?Na pilha de papéis inconclusos sobre as mesas?Nas xícaras deixadas pela metade?Nas longas pausas entre uma colheirada e outra de expectativa dissolvida em grãos de êxtase descafeínado?


  Mas havia ainda uma saída.Havia uma porta de emergência aberta para sua passagem.Era a confraternização de despedida.Era hoje.Estava próxima.Era agora ou nunca mais.Vestiu seu melhor visual, correu para a festa vindoura.Um dos primeiros a chegar.Ela já estava lá.Obviamente que estava.Era sua festa de adeus, so long, no more, never again...Todos a cercavam.Todos a chamavam para desejar boa sorte.Abraços calorosos.Discursos de última hora.E de repente, ela se viu só.Ele a viu só.Por um minuto a avistou sem ninguém a rodeá-la ou endossar sua triste partida.



  Parecia reflexiva.Fazia Ioga, Pilates, talves fosse só um momento de meditação corriqueira.Encontro com ela mesma.Controlar o nervosismo, a ansiedade pela incerteza quanto ao futuro.
-Parece que estamos sem café hoje- ele brincou.
-É, parece que nosso café fará falta! -estava distante ou apreensiva, não conseguiu decifrá-la.Ela continuou num tom de desabafo;
 -Você me fará falta! -era sua deixa de cinco anos, cinco anos trocando idéias e histórias por mera distração, não poderia ser apenas coincidência.Eram olhos através das paredes de concreto.Olhos com mira a laiser dinamitando com ousadia voraz a tímida cordialidade imposta...


  Ele sugeriu despropositadamente:"-Podemos continuar o café num lugar diferente!" - na cama, pensou com um sorriso de malícia nos lábios, não o disse.Vontade oprimida sobrepujando a coragem latente.Não o disse.Quem o faria?
Tantos anos lado a lado e estavam ainda se conhecendo.Era um recomeço promissor, de uma antiga estrada antes já percorrida por ambos.Por todos nós!



  -Conheço um lugar aqui perto!Costumo ir lá de vez em quando.Não é o melhor café da cidade, mas é um lugar bem agradável para um eventual bate-papo entre velhos colegas...Que acha?
Ela sorriu por um momento.Charme e mistério pontual em cena.Fez com que ele ficasse curiosamente impaciente, e sentenciou:
-Sabe, não sou uma viciada em cafeína, aliás nunca fui.Sempre preferi chá...Mas gosto de uma boa companhia.Quem não gosta, não é?


  Despediram-se ali para um breve encontro mais tarde.Num outro lugar.Uma nova realidade combinada.A vida seguindo seu curso, e o café com um sabor diferente.A Empresa perdera sem dúvidas, uma ótima funcionária.Ele não a veria mais na hora do café, diariamente, como antes.Fora um súbito afastamento.Mas estariam mais próximos e à vontade, de um jeito que nunca estiveram!

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